Caminho de Ferro – A Paixão
Desafiaram-me a escrever umas linhas. Tema? Fácil, vou escrever sobre uma das minhas paixões. “Fácil”? Enganei-me.
Escolher o tema foi. Fechar a torneira das palavras, nem por isso.
Não é nada simples resumir uma paixão numa página. Como é que dissertamos sobre algo que nos apaixona desde que nascemos? Como é que se explicam as palpitações da primeira viagem de comboio, a primeira vez que pisamos uma via ferroviária, a primeira noite a ver máquinas a trabalhar carris e balastro? Como se explica a primeira vez que vi peças a transformar-se num todo?
Para um miúdo do Entroncamento, filho de terra de comboios e de pai ferroviário pensar-se-ia ser fácil. Mas não.
Poderia distrair atenções a jorrar uns palavrões ou siglas tipo “tirafundos”, “BLS” ou “eclisses”. “TJD”, “lacetes” ou “garrotes”. “GTIs”, “palmilhas” e “vortoks”.
Poderia contar histórias emotivas de passeios ou tentar mostrar imagens fascinantes.
Para quê? Desde a inauguração da primeira linha de caminho de ferro em 1825 que se escreveram milhões de páginas técnicas sobre o transporte mais seguro do mundo. Foram feitas músicas, livros, filmes. Por verdadeiros técnicos e artistas! Não iria correr-me bem…
Fiquei assim resumido a falar um bocadinho desta paixão. Paixão em servir, planear, construir, manter e melhorar. Paixão de manter-me em constante movimento, com a mala feita entre obras e projetos. Paixão em ir frequentemente dum local para outro, sempre diferente, seja o mesmo ou não. Um pouco como os “caras de aço” que até podem ser bonitos estacionados, mas só a dançar sobre os carris atingem a plenitude da sua beleza, com aqueles ruídos tão próprios dos rodados a deslizar suavemente ferro com ferro, a marcar ritmo mais ou menos acentuado na passagem das soldaduras de quilómetros de toneladas de carris, a fazer tremer pontes gigantes ou desaparecer na surdez de um túnel.
Quando não pensamos em caminho de ferro nem nos apercebemos que há toda uma comunidade que se dedica a fazer funcionar este mercado de transferências.
Transferir pessoas ou bens de um ponto para outro, de forma rápida, confortável e segura. Foi desta necessidade que nasceu o caminho de ferro e é por ela que continua a crescer e evoluir. Mais rápido. Mais seguro. Mais confortável.
Em menos de duzentos anos, esta ferramenta crucial na revolução industrial transformou-se em essencial para a revolução ambiental. Consumir menos energia, produzir menos ruído, minorar impactos no planeta são condições prementes dos nossos dias.
Mais rápido. Mais seguro. Mais confortável. Mais limpo.
Passamos montes diretamente sem descer um para subir outro. Atravessamos o interior de montanhas. Vagueamos debaixo de cidades e ajudamos a criar novas. Ligamos terras entre desertos e mares.
Levam-se pessoas e coisas dentro de veículos que não se desviam nos seus caminhos. Sabe-se de onde vão, para onde, por onde. A velocidade a que vão, os apitos que dão, as horas a que chegarão.
Sou daqueles que discretamente medem milímetros pelo meio de quilómetros. Observam as peças antes do todo. Sinto as vibrações antes do comboio passar e oiço o ruído como música antes de tocar. Gosto da obra e de vê-la nascer. Fazê-la e partilhá-la sem ter de a assinar.
Sou ferroviário e tenho uma paixão.
Hugo Moreno,
Ferroviário